terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Sala íntima



O relógio já se cansara de bater naquele dia. Seu turno diário se esvaía com os raios do sol. Despediam-se com sutilidade, desprendendo-se um do outro com uma harmonia tal qual água e areia do mar.

Ela já estava lá a olhar o teto há muito tempo. Era o único lugar onde os reflexos insistentes e repetitivos dos espelhos não lhe admiravam. Sentia-se como se suas forças fossem sugadas pouco a pouco a olhar seus traços cada vez mais cansados naquela sala onde só podia olhar para ela mesma.

Chegou rápida como é de costume daquilo que chamamos de pensamentos a ideia de vendar seus olhos e assim não ter que encarar-se todos os segundos com aqueles pedaços vitrais. E é assim que esta história começa. Um dia se despedindo do sol, a sala de espelhos e a inusitada cegueira.

Pergunto-me, tenho que admitir, como ela foi parar naquela sala, fechada com ela mesma, sem portas ou janelas...

Era tarde de agosto, mês árido na cidade do planalto central. O dia fora mal maquiado para que uma ideia de normalidade fosse transmitida àquela, ainda, criança. E como era típico de seu caráter infantil, a sua inocência a fez acreditar que aquela sensação estranha no ar era apenas uma ilusão causada pelo sol.

A tarde correu como um velocista em dia de Olimpíadas. Mas a hora chegava. Chegou a casa. Seu pai chorava. Sua mãe estava cabisbaixa. Sua família desmoronava. Foram horas para que o estado de choque permitisse que os músculos em desenvolvimento voltassem a se movimentarem.

Mas o dia acabou. Eles sempre acabam.

Era o começo de sua jornada até aquela sala. Ela nem sentia seus pés caminhando, nem podia ver para onde estava se deixando guiar por um bússola quebrada por notícias que exigem uma força invisível aos olhos. Os sentimentos começaram a brotar e a mistura do começo da adolescência com aquela vida conturbada eram realmente um terreno fértil para que o jardim até agora tão bem cuidado fosse infestado por espinhos, por pragas.

Suas vestes negras e cheias de correntes, aqueles gritos nos fones de ouvidos e as respostas ácidas e abarrotadas de baixas palavras. Os puxões de cabelo e os murros que dava em si mesma. As brigas. Os sentimentos borbulhando. O desejo de morrer.

Onde estava a doçura e delicadeza daquela garota que sabia adoçar a vida? Onde estava aquela garotinha que se enrubescia ao ser elogiada, ao conversar com alguém que considerava bonito?

Pergunto-me insistentemente porque é tão pouco aceitável ser puro por aqui. Pergunto-me porque as garotas têm sentido vergonha por sonharem e os rapazes estão envergonhados por serem inexperientes. Pergunto-me porque ser divertido é ser apenas aquilo que você não gosta e/ou não tem facilidade para ser. Por que ser tão pouco você?

Fechou-se em seu mundo pequeno e sem vida: Nos seus medos, nos seus traumas, na sua dor, nos seus defeitos. Era um pedaço de si mesma aquela sala vazia e gélida, era a parte onde ela não deveria se fechar.

Ei, garota! Quebre seus espelhos, o mundo é mais que os reflexos vazios e enganosos de você mesma. Há mais beleza nas flores, mais cores nos amores, mais vida no céu. Quebre os espelhos e não deixe os seus defeitos refletirem e voltarem, voltarem e refletirem em você. Quebre seus preconceitos com você mesma, quebre suas autocríticas crueis, permita-se ser feliz. Mande embora esta mãe má que lhe cochicha ao ouvido mentiras, liberte-se do seu pior inimigo, liberte-se de você mesma.

E então a morte que leva à vida lhe mostrará que seus conceitos a respeito do que é viver estavam distorcidos até aqui. Prove deste mel e delicie-se em uma vida delicada, sutil.

[...]

As paredes frageis começaram a tremer. Bum...Bum...Bum.
- Quem está ai? Perguntou amedontrada.
- A resposta veio em dó maior.
- Quem esta ai, responda-me!
- A música começava...

O choro transbordou. A dor gritou.

- Posso entrar, amada minha?
- Não sei se o quero aqui... Disse sem poder controlar as sílabas trêmulas.

O sorriso doce. Os medos que se romperam. A corrida procurando o abraço afável.

- Vamos tirar esta venda, deixe-me ajudá-la.
- Mas...

Quando abriu os olhos viu os cacos de vidro sendo recolhidos, viu a água morna que começava a subir devagar, brilhando como prata, viu que podia nadar sem precisar voltar à superfície. Era o fundo do mar, era o lugar onde poucos têm coragem de ir...

Ela sorriu timidamente, fechou os olhos e pensou: Não há melhor lugar, de fato não há.



[...]



O nosso eu maldoso, carrancudo e mal humorado está nos dizendo que somos muito menos do que aquilo que somos. Nos olhamos no espelho e somos incapazes de nos amarmos, nos admirarmos. Somos simpáticos e/ou doces com a maioria das pessoas que mal conhecemos, mas não nos permitimos experimentar do mel delicioso de palavras delicadas para nós mesmos.

Alguns de nós nos cortamos em nossos quartos, procurando um ritmo qualquer no compasso do nosso caminhar para algum lugar. Outros de nós vestem-se como se estivessem em luto eterno. Tentamos preencher um vazio estranho dentro de nós com as drogas, com o alcool, com o sexo, com a popularidade, com as mentiras. Mas, na verdade, nada disso preenche o deserto que sentimos dentro de nós e que impressionantemente tentamos, todos os dias, convencer-nos que não existe. Eu sei que existe, porque eu já o senti perfurar e consumir tudo aquilo que eu amava, tudo aquilo que eu era..

Sei que tentamos esconder a confusão e a solidão que existe dentro de nós. Dizemos que estamos bem assim, conformamos-nos a estarmos cegos, não desfrutando do que realmente representa a verdadeira vida. A verdadeira vida.

Deixamos a mágoa consumir nossa jovialidade. Deixamos a dor criar pragas em nossos jardins interiores; são as pragas que nos enchem de críticas desprezíveis, de amargura ácida, de um ódio agitado. Mas dificilmente isso acontece explicitamente; porque apesar de repetirmos o tempo inteiro que não nos importamos com o que pensam de nós, nós nos importamos. E o motivo de nos maltratarmos tanto é porque acreditamos na mentira que nos é falada incansavelmente de que só seremos aceitos e bem sucedidos se formos “assim” ou “assado”.

Pura mentira.

Somos a excelência de uma criação única, simplória e por isso mesmo completa. Somos individualmente perfeitos, criados especialmente e perfeitamente para aquilo que amamos. Porque amamos alguma coisa, mesmo que nossa rebeldia não nos deixe falar.

Nos sentimos julgados, desprezados, humilhados e excluídos por alguém, ou por todo mundo, mas na verdade, nós é que nos excluímos, nos humilhamos, nos desprezamos e nos julgamos; afinal, acredite, vemos os defeitos nas pessoas porque nos indentificamos com eles.

Há um amor maravilhoso nos chamando para viver em liberdade.

Meu desejo é que morramos todos os dias, e que assim possamos finalmente desfrutar da auto sinceridade. Fomos feitos para a felicidade, para a verdadeira felicidade.