segunda-feira, 1 de março de 2010

Com champignon

Esta é uma história de amor, embora algum leitor possa protestar que instintos menos nobres o dominem. Envolve uma mulher, um homem e um sentimento entre os dois. Se não quiserem chamá-lo de Amor, tanto faz. Uma rosa com outro nome teria o mesmo aroma etc, etc.

Encontram-se em frente ás sopas enlatadas. Ele examinava uma soupe a l'oignon, ela pegou distraidamente um creme de lagosta, bateu no braço dele e deixou cair a lata. Desculparam-se mutualmente; sorriram-se, e em pouco tempo estavam conversando. Sobre sopas, a príncipio - à medida que percorriam as prateleiras - sobre outros interesses comuns, sólidos e líquidos. Quando chegaram aos queijos, já tinham descoberto várias afinidades. A principal era um gosto pelo champignon que beirava a paixão. Os olhos dos dois brilharam quando descobriram isto. O ar se carregou de eletricidade quando seus olhos iluminados se encontraram e a conversa era sobre champignon. Se era Amor ou outra coisa, que importa?

Devo esclarecer que nem ele nem ela eram jovens. Estavam naquela idade crepuscular onde o espírito está disposto mas a carne já vacila, e o senso do ridículo intercepta o desejo para frustrar qualquer paixão além da mesa. Mas ainda havia, nos dois - como uma débil chama sob a caçarola, só o bastante para manter morno o molho, mas longe de ebulição - um saudável apetite pela vida. Ou, pelo menos, a morna memória de um apetite.

- Conheço uma receita de champignon... - disse ela, baixando os olhos como uma provocação.
Ele chegou perto para superar.
- Como são?
- Recheados.
- Mmmm.
- Só me faltam trufas para completar a receita comme il faut. Nunca encontro trufas...
Ele olhou para os lados antes de dizer no ouvido dela:
- Tenho trufas na minha casa. Da França.
- Não!
- Talvez um dia pudéssemos...
- Meus champignons recheados finalmente com trufas! É um sonho que tenho desde que...
- Desde que?
- Desde que meu marido morreu.
Ele engoliu em seco. Estavam na seção de bebidas.
- Seu marido tinha trufas?
- Não. Não é isso... - Ela parecia alvoraçada. Pegou uma garrafa de Grand Marnier para disfarçar seu embaraço. - É que comecei a cozinhar depois que meu marido faleceu. Para encher o tempo. O meu grande prato é o champignon recheado. Mas nunca fiz com trufas.
- Há quantos anos você...
- Sim?
- Está sem trufas?
Ela estava rubra como um rabanete por fora.
- Doze anos.
- Curioso. Nos cinco anos desde que minha esposa faleceu, recebo trufas regularmente, de um sobrinho que mora na França. Mas, fora um ou outro molho, que minha cozinheira invariavelmente estraga, não sei o que fazer com minhas trufas...

Alguma coisa pairou sobre o silêncio que se fez entre os dois naquele instante. Alguma coisa ainda disforme, a sugestão da sombra da possibilidade de uma idéia. Não podiam ter certeza que daria certo. Às vezes está tudo conforme a receita - Champignons dos grandes, recheio de queijo, a manteiga e o creme para o molho, as trufas acrescentadas ao molho antes de gratinar - e não dá certo. Mas como saber, sem provar?

Esta história tem dois finais, à escolha do leitor. Doce ou amargo, como as sutis variações da cozinha oriental. Num final ele pergunta para ela "Você quer?" E ela faz que sim com a cabeça. Então ele pergunta: "Na minha casa ou na sua?" E ela responde: " Na minha, porque eu conheço a cozinha..." No outro final, os dois se despedem, nunca mais se vêem, e o espectro de uma possível sauce com trufas perfeitas para os champignons recheados fica vagando entre as prateleiras, por todos os tempos.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. A mesa voadora