quarta-feira, 24 de março de 2010

He


Ele se esconde atrás de uma armadura de papel de seda, acreditando ser ali o lugar onde palavras não vão atingí-lo e onde o mundo não poderá encontrá-lo. Todos os dias, pela manhã, ele encara seus próprios olhos no espelho e não encontra aquele homem que queria encontrar; aquele que fala dos seus sentimentos, que conta seus anseios, que chora quando quer chorar, que conversa com as pessoas, que acredita em tudo aquilo que planeja no caminho para a faculdade, que sorri porque de fato há alegria, que canta melodias repletas de verdades vividas, que toca como se ouvesse ali a mais bela obra inventada, que abraça as pessoas na tentativa de prendé-las a ele...

Vai até aquele amontoado de roupas sóbrias, escolhe esta e aquela peça, senta-se na beira da cama, amarra os cadarços daquele tênis surrado, encara-se mais uma vez no espelho, toca os cabelos, esborrifa aquele líquido marcante com notas amadeiradas no pescoço, coloca sobre um ombro a alça da mochila e deixa aqueles amontoados de papéis lhe tocarem os quadris, procura o tefefone portátil e o conjunto de chaves, abre a porta do quarto, fita-o pela última vez e sai tintilando com as chaves até a sala, um beijo e a rua.

Sentimentos e pensamentos. Tudo o que ele quer é fugir dele mesmo naquele momento. Sem culpa, sem mágoas, sem palavras não ditas, sem som, sem medo.

Alguém lhe toca o ombro, ele se vira para trás. É um homem de pele clara, com cabelos compridos, amarelados; não fala nada, apenas sorri; lhe estende a mão, que envolve um pequeno papel dobrado, ele toma o papel para si, sorri, não consegue perguntar sobre o que se trata, aqueles olhos... Um carro passa. Quando olha novamente na direção do homem, percebe que ele não está mais lá, fôra embora com mesma rapidez com que aquele carro passara, como? Não importa.

Quando desfaz a única dobradura do papel, vê pequenas palavras escritas a mão, em letra de forma, onde lê: Escreva sua própria estória. Atravessa a rua. Guarda o papel no bolso direito. O que o escritor daquele papel queria dizer?

Suas mão estão geladas e seu braço arrepiado, há alguém caminhando ao seu lado direito. Ele apenas sente. Sabe muito bem quem é aquele que acompanha seus passos e suas batidas aceleradas no peito, conhece aquela presença, aquela imensidão de amor, de paz, de força. Não há o que dizer, apenas um sorriso basta, "olá" é o que significa para os dois. Outro sorriso, este é diferente; não é um sorriso humano, não expressa um alegria humana, nem qualquer sentimento humano, é completo, repleto, largo, brilhante, expressivo e amigo: "Olá."

O dia passa semelhantemente aos que ele têm visto desde o começo do mês. Pessoas, abraços, aulas, documentos, mais pessoas, conversas divertidas e um vazio descomunal que ele não sentia há muito tempo. Aquele homem continua ao lado dele, sem pronunciar qualquer palavra, não há um sorriso em seus lábios; ele está olhando para o rapaz à sua esquerda, com um olhar firme, companheiro, sincero. Lembranças invadem o rapaz. Saudade. O homem ao seu lado o envolve em seus braços; é alto, robusto, com aparência experiente, não há preocupação, nem cansaço, é vivo como os olhos das crianças.

"Tira-me daqui, Pai. Leva-me de volta àquele lugar onde tudo começou, onde eu me apaixonei. Onde eu pude Te sentir, Te tocar. Aquele lugar onde conversávamos e eu lhe contava tudo aquilo que meu coração nunca disse para ninguém. Sinto saudade; saudade de ajudar as pessoas, de compartilhar palavras que tantas vezes o Senhor compartilhou comigo sobre elas. Tenho saudade dos versos que eu escrevia. Eu me perdi dentro dos meus problemas, Senhor. Quero voltar à superfície, vencé-los, um a um, não deixe que eu me afogue outra vez. Não quero andar por lamaçais, me envolver com um passado distante. Eu quero somente aquele primeiro amor, que me fez estar perto de Ti e Você perto de mim. É tudo o que eu mais quero." Disse envolto por aqueles braços acalentadores. O silêncio. Foi interrompido por um som agudo que o levava de volta a um retângulo de mais ou menos 60 metros quadrados, o dia já se despedia.

Voltou para casa. Abriu a porta, deixou aquele cheiro de lar lhe invadir os pulmões, foi até a cozinha, bebeu um copa d'água. Estava sozinho. Deixou as chaves sobre o criado mudo e a mochila sobre a cadeira da escrivaninha. Deitou na cama e adormeceu.

O sonho que teve mudaria sua vida para sempre. Ele viu a estória que deveria escrever. Era sobre um rapaz que se escondia atrás de um escudo de papel de seda, chamado autosuficiência...

Ele pôde encontrar aquele homem que não enchergava no espelho. Estava dentro dele mesmo. Ele apenas não sabia.